O homem e o poeta


O sol nasceu, o despertador tocou, o mau-humor voltou. Carlos sonhou com seu pai naquela noite, mas não se lembrava o porquê. Seu ceticismo o leva a crer que era algo totalmente ligado a memórias recentes e pensamentos periódicos.



Carlos morava em uma pequena casa azul, com suas paredes já desgastadas com o tempo, duas grandes janelas na frente, um telhado triangular e um quintal cheio de terra a sua frente. O aluguel era uma das suas principais preocupações, e sempre que havia questionamentos de sua mulher sobre qualquer tipo de reforma na casa Carlos ficava insatisfeito com o imóvel.

Seus cabelos brancos já eram a demonstração de uma total apatia e desgaste emocional. Mesmo com o nascimento de seu filho, não sentia grandes alegrias e contentamentos na vida. Seus maiores medos não estavam ligados exatamente à suas contas e seus problemas familiares, mas sim o medo de continuar vazio e sem rumo. Carlos não tinha ambição alguma nem grandes metas. Trabalhava numa fábrica de sapatos, onde passava o dia todo em frente a uma grande esteira confeccionando as solas. Era um trabalho entediante, mas oferecia a estabilidade necessária para criar um filho. E o fato de não acreditar em suas próprias capacidades deixava-o sem expectativa para agir e crer em uma carreira 
profissional mais satisfatória.

A pior parte não era a de trabalhar, mas sim nos intervalos. O tipo de diálogo que ele presenciava apenas o deixava mais desinteressado de criar qualquer tipo de laço. Almoçava no grande bloco maciço cinza com algumas janelas e uma enorme porta que era o refeitório. Havia ao menos seis mesas largas e brancas, e na maior das paredes havia compartimentos fartos com os componentes diários do almoço.

Não se interessava por futebol e nem por política. Logo sentava na mesa que sempre permanecia vazia e logo após ia tomar um pouco de ar, fumar seu cigarro e observar as ruas. Até que um homem, bem mais sorridente chegou próximo e pediu um cigarro. Carlos tirou o maço do bolso e entregou para o homem, já que só havia mais um ali dentro.  Ele o questionou sobre o tempo. Nublado, respondeu Carlos. Como sempre, poucas palavras.

O homem então continuou dizendo que muitas pessoas consideravam esse tempo ruim, mas para ele era o melhor possível. Carlos então perguntou o motivo disso e foi surpreendido pelo homem dizendo que era poeta, e que suas inspirações vinham acima de tudo da natureza e dos objetos.
Após alguns minutos de mais conversa, Carlos partiu, porém, carregou consigo a última coisa que o 
poeta disse; ‘’A vida é bela! ’’

Era algo tão clichê que parecia que um poeta que busca algum tipo de prestígio jamais diria. E então Carlos se pegou pensando que a maioria dos poetas não quer o prestígio por si.
A situação continuou a repetir-se nos próximos dias. Carlos continuava a permanecer em seu silêncio a maior parte do tempo, mas o poeta insistia em continuar.
- Sabe... eu tenho pensado muito nessa tal de modernidade líquida. Já ouviu falar? Indagou o poeta.
-Não tenho muito interesse nessas coisas.
-Então diga-me, o que lhe interessa?
Carlos então levou outro cigarro a boca, respirou fundo e acendeu-o com o isqueiro. O poeta continuou a olhar de maneira boba e admirada para as nuvens. Era outro dia nublado. Carlos então continuou;
-Por que você é feliz?
-Sou feliz porque sou.
-Você não tem família, nem emprego, não sei o que você faz da vida, mas está ai sempre pra conversar comigo. Por quê? Acha que sou especial?
-Você pensa muito na razão das coisas, Carlos. Existem coisas que os porquês não explicam. São coisas que apenas acontecem e você encara da forma que quiser.

Carlos não disse mais nada. De volta ao trabalho, a vida é bela. Vale a pena ser vivida, não é mesmo? Indagava a si próprio.

Retornando para casa no ônibus, Carlos viu uma senhora em pé enquanto um jovem estava sentado no assento preferencial, ouvindo música em um volume altíssimo e com sua atenção totalmente focada em seu celular. Nada podia ser feito a respeito, tem coisas que simplesmente acontecem não é 
mesmo poeta? Pensou Carlos.

Ao chegar em casa, sua mulher o recepcionou com a briga diária, reclamava da demora e da falta do remédio que ela implorou para Carlos. A pequena Cléo estava muito febril. Carlos disse que ficaria com a menina a noite toda para a esposa descansar.

Ele observava o pequeno rosto angelical de sua filha de apenas seis meses. O barulho dos brinquedos sonoros não o incomodavam. Era melhor que o silêncio absoluto, esse sim era gritante no âmago de seu peito.

Ele então pensou no poeta. Sentia um pouco de inveja, da facilidade de se comunicar, a inspiração, a forma de se encontrar no mundo. Ele não se sentia representado. Era apenas vazio. Completamente substituível. Ele decidira então dizer isso que sentia para o poeta na próxima vez que o visse.
Então na outra semana, o poeta o encontrou no seu horário livre. Desejou uma boa tarde de maneira bem espontânea como de costume e então seguiu adiante com o assunto. Dessa vez a empolgação era o lançamento de sua primeira coletânea de poemas. Sua empolgação era tanta que Carlos mal teve tempo de dizer muita coisa.
-Eu e minha mulher temos tido uma relação muito desgastante. Sinto que o único lugar que consigo ser quem sou é aqui nesse parque sujo com um sol quente e o cigarro na boca.
-Carlos, se acalme. Se vocês estão juntos é por uma razão. Tente-se lembrar do início onde tudo eram flores e seguia bem.
-Eu não me lembro disso, faz tanto tempo...
-Olha, não sou um especialista, mas parece que você tem um sério problema com bloqueio de memórias. Você sempre me fala coisas parecidas.
-Talvez eu esteja mentindo, não sei. Eu sinceramente não sei.

O poeta então parou por um momento. Abriu sua mochila e pegou um pequeno livreto azul escuro. Estava escrito com caneta vermelha O CANTO DA ALMA. Continuou por alguns instantes a folhear em busca de alguma coisa. Carlos apenas continuou observando. Então ele retornou a falar.

Oh doce alma
Não compreendo teus desejos
Há uma nuvem que encobre minha cabeça
E me deixa sempre de joelhos
Não encontro descanso algum
Isso mancha a minha estrada
Não te peço nenhuma caridade
Apenas um pouco de tempo
Por favor, tenha piedade.

Carlos ficou impressionado com o poema, de uma maneira que não ficava desde o último sorriso de seu pai. Ali havia a resposta de alguma forma, porém ele não compreendeu o significado daquilo tudo. Após isso, o poeta despediu-se com a tão conhecida frase; A vida é bela!

No outro dia, o estado de Cléo piorara significativamente. Carlos á levou para o hospital e lá ficaram, pai e filha. O diagnóstico não era muito otimista, teria de permanecer algumas semanas hospitalizada. Carlos estava determinado a permanecer com a filha, foi até o trabalho e pediu uma licença, enquanto relatava o caso. Após isso, no horário de almoço, aguardou o poeta que chegou atrasado, algo incomum para ele. Estava bem apático na aparência e a voz bem fraca e frágil, Carlos avisou que ficaria um tempo fora e o poeta apenas sorriu.

-Sabe, Carlos. Às vezes acho que aprendo mais com você do que o contrário.
-Isso é uma enorme bobagem, graças a você me lembrei da razão do meu vazio. Mas só posso contar isso num dia mais tranquilo, preciso ver minha filha.
-A vida é bela! Adeus, Carlos.
Com isso, Carlos seguiu e permaneceu dias junto da pequenina. O resultado ia melhorando pouco a pouco, mas as dívidas apenas se acumulavam com o tempo. A maior das suas preocupações, no entanto era a sua garotinha. Havia até parado de fumar nesse período, tudo para se dedicar totalmente a uma causa. Isso o surpreendia bastante.

A situação se amenizou após algumas semanas. Sua filha já estava melhor, seu casamento estava bem mais ameno e o emprego já nem o incomodava mais. Carlos apenas sentiu falta do poeta, que não aparecia mais nas horas de almoço. Curioso e em busca de encontra-lo, Carlos pergunta então para pessoas nas proximidades sobre o homem, porém não encontra informação alguma. Decide então passar pelas editoras, em busca de mais informações, mas ele jamais havia dito seu nome. Sempre que questionado respondia apenas que era um poeta navegando pela vida.

Alguns meses depois, Carlos ia a pé para casa após um exaustivo dia em seu novo posto na fábrica. Enquanto andava despreocupado reparou numa livraria que tinha na vitrine o livro do poeta. Não havia o nome do autor na capa, o que era muito estranho. Ele adentrou na loja e folheou, decidiu então por comprar o livro e talvez encontrar algo que o ajudasse.
Após muito tempo de leitura, não chegou a conclusão alguma. Era apenas um livro de poesias comum. Porém ficou surpreso ao se deparar com a última página, com uma ilustração de um cigarro e embaixo os seguintes dizeres;
O marinheiro tem hora para se despedir
Já é tarde demais para poder sorrir
Gostaria de mais tempo nessa terra infame
Mas as circunstâncias me trouxeram até aqui
Vou partir na minha última jornada
Só espero que seja um dia nublado
Enquanto navego rumo ao nada

Após terminar de ler a última frase Carlos se encontrou aos prantos. Não sabia o que dizer, nem o que pensar. Em outros poemas havia a citação sobre uma doença incurável, dezenas de linhas melancólicas revezando com alegres. Era a efemeridade da vida surpreendendo novamente, assim como aconteceu com seu pai. Era uma noite fria, Carlos acendeu um cigarro e foi para fora. Observando a lua e as estrelas disse apenas uma coisa.

-A vida é bela.


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