A Última Reunião

    A entrada dele na sala foi sutil, acompanhando a brisa que se esgueirava pelas frestas da porta. Seu comportamento era o de observar os móveis e sua disposição dentro do espaço físico, de modo manso, chamando pouca atenção. Os dois sofás bege roubavam a atenção de qualquer um, além de forçar o olhar desconfortável de quem sentava frente a frente. Encarar alguém é o silêncio do corpo, que insiste em não permanecer parado.O objetivo é demonstrar incômodo até o anfitrião efetivamente começar a discussão. Naquela sala não havia conhecidos, eram ciclos sociais que se chocavam puramente pelo fato de amigos em comum. A ocasião determina quase tudo na vida. Outro fator que gerava instabilidade era o imponente relógio dourado que tinha um local de destaque na parede, herdado do avô do anfitrião e que representava sua tradição de gerações. O ritmo do relógio definia o ar da situação.

    Isso fez o homem lembrar de seu próprio passado. Quando criança, o menino passava a madrugada inteira aflito com a reprodução do som estrondando entre a passagem das horas, seu aspecto intimidador relembrava uma grande catedral. Refletindo sobre isso o garoto concluiu que seu silêncio contínuo teve origem nessa casa, onde guiava pensamentos para o interior e jamais dividia os próprios sentimentos. Os amigos não o incomodavam por isso. Havia um respeito mútuo pelo tempo, a cobrança era pontual e repetia-se pelos anos. No final tudo ficou bem. No amor, o silêncio sempre foi motivo de disputa, apesar dos esforços, era algo que não poderia ser mudado. É mais fácil mudar o que se é, do que algo no querer. As medidas paliativas já não davam contas após os anos, era sempre motivo de mal-estar.

    Aguardar respostas é a maneira mais comum de dobrar a percepção do tempo. Os oito minutos disparados pelo relógio se tornaram trinta e seis. O maior medo de todos naquela sala era o início de uma conversa absolutamente dispensável e inútil. A reunião se tornaria cada vez mais exaustiva até a revelação dos motivos, que quando foram ditos pelo anfitrião geraram um misto de mistério e urgência. Por que ele queria todas aquelas pessoas juntas? Quando jovens, eram apenas três. Agora há um montão deles! Todos os anos em seu aniversário, o conflito era velado e os amigos permaneciam em espaços diferentes. 

    O anfitrião estava ainda realizando os últimos ajustes, enquanto o homem resolveu enfim observar todos aqueles estranhos na sala. Havia uma moça que era mais do que ele poderia enxergar. A história deles começou tempos atrás e jamais teve um fim muito claro.

    Rever seu amor de tempos atrás era como relembrar as memórias do corpo. Seu semblante remetia a idealização que ele sempre sonhou. Era modesta e sincera, sem a menor dúvida de que jamais mentiria para ele. A troca de olhares era precária, pela maior parte do tempo a garota observou o relógio e a parede. O rapaz continuou próximo a porta, como quem está prestes a sair a qualquer instante. O trio iniciou-se pela cumplicidade e investimento de tempo. Andavam sempre juntos no ensino médio, e buscavam aliar-se pelos interesses em comum, o anfitrião amava música, a garota, pintura e o terceiro, poesia. Eram crianças aprendendo o mundo do amor, era sempre um amor fraterno. Pareciam donos de seus próprios destinos, cheios de sonhos e ideais de superação humana. Quando iam ao teatro sempre corriam para pegar as melhores fileiras, e os três davam as mãos firmes. O coração disparava de modo surrealista, iriam sempre voar para criar cada um sua própria arte. O sonho dos jovens idealistas era de encontrar mais um amor, para aglutiná-los em meio ao teatro ou cinema. Conforme ia crescendo, o poeta foi partindo do seu próprio viver e afastou-se completamente para a solidão. A garota percebeu que grande parte da magia que envolvia suas aventuras vinha de um caráter fechado e misterioso, que jamais foi visto novamente. Resolveu então partir em busca de encontrá-lo, e finalmente estando ao seu lado fez a única coisa que poderia ser feita naquele momento. Dormiram enfim juntos.

    Como toda intersecção entre artes, há um limite. Separaram-se, de amor, bairro, cidade, distrito, escolas, filas, gostos. Eles dedicaram-se mutuamente durante aquele tempo e perceberam que estava se perdendo durante o caminho. O que restou foi um alfabeto de distância, do primeiro amor  e os carinhos que ficaram pelo corpo, marcados como manchas de sangue.

    As lembranças continuaram a voltar a consciência, lentamente. A divisão era clara pelos sentidos, primeiro a visão (era um homem, afinal de contas), depois o tato, o olfato e o paladar prosseguiram. Apenas a audição ficou de fora, ele realmente não se lembrava do tom de voz da moça. Era a principal reclamação dela, nunca a ouvia. Este fato causou-lhe uma náusea infantil. Apesar de tudo, queria relembrar aquela voz totalmente alheia.

    Relembrar o passado guiou as horas, e após uma série de ladainhas o anfitrião retornou e disse tudo o que tinha para dizer. Era câncer no estômago, crônico, fatal e veloz. Todos chocaram-se e sabiam que estavam prestes a perder o amigo maestro. O poeta não sabia o que dizer e permaneceu lá atônito. Queria fumar um cigarro, mas viu que não era de bom tom. Então a pintora enfim decidiu falar, chamou apenas o maestro em um lugar reservado e lhe deu um longo abraço. Relutante, pediu para chamar o poeta. E decidiram-se assistir a última peça juntos. A diferença dos adultos era pouca, e o coração parecia ainda puro, cheio de comoção pela vida e pela morte. Estavam pouco ansiosos, e o futuro que sempre pareceu durar muito tempo agora se reduzia apenas a cinco atos. Depois, apenas se veriam no velório. Não haveria música, o maestro gostaria de encerrar sua vida ouvindo a própria sinfonia. Passaram a noite toda sem dizer uma palavra e seguiram para suas casas. 

Ninguém pintou, tocou música ou escreveu poesia naquele dia. 


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