Luto e Melancolia

 


No luto, o que desaparece é o objeto desejado, transformando a vida do homem num absurdo. Na melancolia, quem desaparece é o próprio sujeito.


Lívia despertou em espanto. Levou alguns segundos até que se reconhecesse em seu apartamento em São Paulo. A primeira reação foi de euforia e respiração ofegante, sensação que repetia-se há dois meses. Depois de alguns minutos em inércia profunda, a apatia tornou a fazer-se presente. O gato, Fernando, pulava entre roupas sujas do quarto e a pilha de louças da cozinha. ‘’Preciso arrumar essa bagunça, eu sei o que deve ser feito. Mas…’’ pensou, e seguiu em direção a tarefa de organizar a rotina, que funcionava algumas vezes, contudo teve a sensação de que o dia estava propenso ao fracasso. 


Naquela manhã, os trovões e a chuva estavam em intensidade maior que o normal, acompanhados a eles, a sensação de desamparo. Trabalhar servia como combustível duplo, entre a exaustão e a distração dos pensamentos ruins. O desamparo estava relacionado a culpa, era sua culpa. Abandonou a mãe para viver o sonho da cidade grande, perdendo momentos cruciais e raros de lucidez antes de seu falecimento. Ficar trancada em uma cidade modesta, sem a filha, amigos, irmãs e o marido. Não era possível resistir. 


O coração seguia com cadeados e correntes que o apertavam. Quarta feira é o dia de teatro e do curso de pintura, e do trabalho. Todos seriam esquecidos pela alma, eram apenas produtos de uma esteira fabril, onde Lívia apertava as peças e encaminhava para avaliação do patrão. O processo de luto era inconcebível, a vida não podia parar, e mesmo assim, cada vez mais, sentia-se longe de tudo que amava e dissociada de sua própria vontade.


Algumas semanas atrás, Fernando derrubou a caixa que estava em cima do armário e continha diversas fotos felizes de Lívia com sua mãe. Arrumar e organizar todas exigiu um esforço hercúleo e levou uma quantidade significativa de tempo. Era como se toda a dor tornasse vívida novamente, em seus problemas infinitos e conflitos latentes…


A vitória era adquirida em momentos pequenos, como uma música favorita tocar no aleatório ou então cumprir leves tarefas do cotidiano. Perceber-se como sujeito que tem um propósito e vê as mudanças da vida. Após encerrar seus conflitos cotidianos, adormeceu e teve um sonho.


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Marcelo tomou seu café e fumou seus três cigarros habituais. Seguiu atrasado até o metrô. Esqueceu de checar propositalmente o celular e partiu em passos apressados. Sempre com os mesmos pensamentos circulares, ‘’Tu és responsável por bancar teu desejo’’. A maldita psicanálise o perseguia de forma permanente. Ele sempre distribuía ofensas até quando tentava ser gentil sempre com dificuldades para expressar-se e impossibilitado de qualquer conexão.


Sentia falta do pai, era seu exemplo e amigo. Agora, só, sem jeito ou sujeitos para compartilhar sua identidade no mundo. Qual postura deveria permanecer para melhorar?  No caminho para o trabalho, deixou de ouvir suas músicas favoritas para dedicar-se totalmente ao barulho da cidade grande. Caótico e repetitivo, cinza e sem personalidade. Seus pensamentos referiam-se a um objeto de conhecimento duplo. O eu e o mundo. No trabalho, o único a ser ouvido era o chefe Nada mais importava além de uma profunda alienação que servia como fuga de consciência.


O abuso do álcool se intensifica com os dias, Marcelo dobrou seu turno e planejava a venda do imóvel do pai. Era uma casa de veraneio muito bem localizada, onde todas as memórias de sua infância se concentraram. Os irmãos o aborreciam frequentemente exigindo novidades sobre a casa, e jamais ofereceram qualquer apoio para Marcelo. Era um cinismo exagerado que dizia sempre respeito à própria família. Marcelo sentiu a ira tomar conta de si, e planejou jogar-se do topo de seu prédio.


O  emocional era sempre secreto, as aberturas eram escassas, como poderia confiar em alguém?  O ciclo de aproximação e distâncias eram sempre infelizes, não mantinham a vida coesa e abalaram a frágil estrutura. Era o medo de ser insuficiente, a possibilidade que mata  a criatividade diária, a mesquinhez de um caçula mesclada com a  responsabilidade de um primogênito. Aonde iria sem ser mandado? Sua fonte de prazer era gerada com uma necessidade de orgulhar alguém. Cuidar do pai no final da vida, criou a sensação de merecimento, ele precisava ser amado. Doar-se de forma prática, sem palavras. O sentimento é sempre maior que qualquer palavra, e então tudo estava relacionado com as memórias, a casa, a infância. Era um pai extremamente participativo, que cobrava tudo de seus filhos. Um general e amigo, que causou fortes impressões em Marcelo.


Passividade em forma de irmandade. Aqueles irmãos miseráveis, que abandonaram o pai no momento mais infernal e destrutivo da vida. Urubus que cercavam e farejam a carniça, sem escrúpulos morais.  Quais decisões deveriam ser tomadas afinal? Marcelo foi tomado por uma sensação de morte. A saída era encerrar o ciclo na casa, tomado por impulsos coléricos que encerravam qualquer dúvida. 



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Lívia despertou com memórias desse homem, estava desorientada e completamente deslocada do espaço físico de seu apartamento. ‘’Como aquele homem vivia assim?’’ pensou enquanto buscava compreender com uma clareza impensável. Aflita e com intensos espasmos, que aparentavam ser insustentáveis, aquele homem era definitivamente a solução de seus problemas. Ela era Marcelo, e o via de formas reais. A condição essencial da vida é a solidão dos que partiram, e a certeza de que tudo será alterado.


Como se a sensação metafísica de conectar-se com um outro que sofre a fizesse mais impetuosa, mais consciente de si mesma. A rotina não era uma coisa bela, límpida e motivadora, mas era o mecanismo da vida que prosseguia para além da insegurança e de tudo que estava a prender Lívia em seu passado. Racionalmente, o preferível seria ódio, tudo aquilo que lhe fazia mal. Mas simplesmente não havia nada dentro daquele homem. O tempo não era linear, mas circular. Não havia condições de possibilidade em um futuro, a única notoriedade e traço de individualidade era seu conflito com o pai. Cada vez mais a menina afundava-se nos problemas de Marcelo, e não pensava na origem dessa imersão como um problema psicológico ou mágico. Era apenas uma sensação que estava profundamente vívida. 


Decidiu então partir para seu restaurante favorito de sua mãe, fato este que não a ajudou a esquecer, mas sim lembrou que todos os fatos deveriam ser enfrentados com resignação. No meio do caminho encontrou um professor de publicidade, que sempre lhe incentivou a perseguir projetos mais ambiciosos e fornecer-lhe materiais complementares sobre sua matéria favorita Apesar da suposta despretensão, Lívia sempre imaginou-se como uma pesquisadora renomada na área teórica de comunicação. Jantou sozinha, prestando atenção nas ruas e nas pessoas, todas as companhias que cercavam as relações, suas dinâmicas e possíveis conflitos. Viver com a mãe não era fácil, e os problemas ofuscaram os maiores talentos e suas qualidades. Como último ato trágico do dia, partiu em direção ao teatro. As gerações que herdarão a vontade dos gregos carregavam consigo um legado maior que qualquer outra espécie de literatura ou arte.


É difícil obter condições dóceis e acalentadoras, as tentativas repetidas e sempre almejadas, sempre em conversas de cotidiano, com colegas sem qualquer conectividade. Em diálogos alternativos o final era sempre intervenção na fala, sempre perguntando o motivo de toda aquela tristeza. Lívia partiu para o teatro com pouca vontade e interesse, a parte mais interessante de tudo aquilo eram as gargalhadas de sua mãe. A voz rouca causada pelo fumo, a saudade que apertava o peito quando a mãe cuidava da vida. As piadas da peça eram previsíveis, e ela já sabia quase todas de cor. O legado não substitui a ausência, e tudo o que ela queria era sua própria condição renovada. Como se todos os sonhos do mundo fossem vazios e distantes, ela tornou a dormir com o barulho da chuva. Estava emocionada, a vida era algo maior que o passado e menor que o futuro.

Naquela noite, os trovões haveriam de cessar.


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